A Marta Porto a discursar.

Texto original apresentado no CULTURAL POLICY IN CULTURAL RELATIONS: SYMPOSIUM – People Palace Projects and Bristish Council UK
26 e 27 de Junho Queen Mary University of London

Cultura importa?

É preciso reinventar os sonhos que moldam o mundo.

Isso significa atuar naquele substrato humano que soma uma ideia de racionalidade sobre como o mundo é e deve funcionar e uma esperança de que a vida se realize próxima dos nossos desejos, esperanças, necessidades e motivações. Isso significa também um retorno a um ideal aristotélico de “poética”, o lugar onde se valoriza a potência da imaginação humana para criar mundos e realidades diferentes das que um determinado tempo-espaço nos brinda. Tornar a linguagem um ato de fala, onde você cria ou propõe uma realidade e não apenas a representa.

O que seria o espaço da cultura, das artes a cada tempo histórico, com suas equações, verdades, postulados e crenças sobre sucesso e fracasso, se não esse? E como pensar a cultura e as artes como este repositório de ideias, imagens, atos e pulsões que reunidos nas mais diversas linguagens, línguas, visões e cosmovisões que formam um amálgama das crenças e sonhos da humanidade, para desenhar políticas capazes de atuar concretamente em um mundo que pede, exige mudanças e transformações? Se toda a ordem é imaginada, como nos lembra o historiador israelense Yuval Harari, é urgente, neste momento de muitas sombras e pouca luz, que a nossa capacidade imaginativa seja orientada para transformar a cultura que sustenta as crenças que definem o mundo, para reinventá-lo.  As políticas culturais são a fonte natural e a mais potente para realizar esta epopeia de reimaginação do mundo, do seus sistemas de ordem e progresso, das suas razões econômicas que fazem 8 homens brancos bilionários reterem a mesma riqueza que 3 bilhões de pessoas (metade da população global), das fronteiras reais que levam comunidades, famílias e indivíduos a viverem longe dos seus lares, das suas terras e privadas do direito de mobilidade e de vida digna, e as imaginárias, que conduzem à intolerância, ao racismo, a misoginia e, em muitos casos, a morte.

Há que se perguntar: em um mundo que se torna mais desigual a cada ano[1], como promover valores de prosperidade compartilhada, de solidariedade, de cooperação e mobilidade? E como desenvolver e apoiar usinas de inteligência que proponham soluções, ideias  e imagens cujo o propósito seja promover valores culturais, inovações em processos de aprendizagem, conteúdos e linguagens para a comunicação de massa (publicidade, entretenimento, notícias) e novas plataformas de mídia (aplicativos, jogos, internet das coisas) que funcionem como um manifesto, uma declaração sistêmica que crie novas possibilidades de nos conectarmos uns com os outros e estabelecermos noções e crenças diferentes das que nos regem hoje. Isso não é uma utopia, e sim uma mera imitação de momentos-chave da história das civilizações onde homens e mulheres se perguntaram se aquela ordem na qual estavam submetidas era a adequada frente as mudanças em curso. São as rupturas necessárias para se seguir em frente.

E o que podem as políticas culturais? E como devem ser moldadas para colaborar com este enorme desafio? Sigo 3 ideias, com algumas premissas:

Premissa 1: Arte é arte e não deve ser pensada como meio. Defender a premissa da importância das artes per se nas políticas culturais é uma urgência. É devolver ao desenvolvimento e com isso, a ideia de vida pessoal e coletiva, a sua dimensão espiritual, do espaço da não-função, da imaginação livre. É preciso libertar as artes das pressões econômicas e sociais, valorizando-as pelo valor que os artistas têm para criar, pensar e agir livremente;

Premissa 2: Nem toda a cultura deve ser preservada, sacralizada ou mantida. A cultura define os valores que sustentam crenças, decisões e ordens de uma coletividade em um determinado tempo e espaço. O arbítrio, a violência, a censura tem por base valores e visões culturais do mundo. É preciso atuar de forma orientada e firme para que a cultura desenvolva valores benéficos que colaborem e não destruam formas de vida, de produzir riqueza e de se relacionar com o sagrado;

Premissa 3: Não existe democracia política sem democracia cultural. Isso não é um exercício retórico, mas uma construção social. Criar um ecossistema que garanta que estes valores continuem a existir e se sobreponham a necessidade de criar muros, de destruir culturas e formas inteiras de existência é uma prerrogativa ética;

Premissa 4: Em um mundo globalizado de avalanche informacional, toda mudança cultural, ou valorização de culturas, tem um desafio de produzir comunicação. Os meios digitais e as tecnologias e plataformas que dominam o espaço virtual, em si não cumprem com esta prerrogativa. Comunicar é mais do que fazer uso de meios, é pesquisar a natureza da recepção, os novos códigos que promovem subjetividade, as linguagens capazes de criar interações e colaborações virtuais ou não. Toda mudança cultural é um ato de comunicação. De que comunicação estamos falando? Temos que descobrir.

Aí vamos para as três ideias que acredito podem redesenhar as políticas culturais em um mundo globalizado:

Ideia 1: Criar um ecossistema que inclua espaços culturais, start ups, programas de curadoria e para formação artística, pesquisas científicas e centros de ciências, que funcione como um laboratório e um consórcio de ideias para pesquisar e desenvolver projetos, plataformas, arquiteturas, produtos editoriais e audiovisuais cujo único propósito é criar novas declarações de mundo, que comunique valores que sustentem imagens humanas de criação, inovação, empatia e solidariedade. Que proponham formas de aprendizagens capazes de tornar as decisões futuras mais benéficas para os 99% que ainda esperam por fazer valer a sua trajetória humana na Terra. Um programa que organize uma onda potente, uma cena coesa pensada como um imagination lab, que atraia jovens, não tão jovens, velhos, líderes, pensadores, artistas, cientistas, curadores e criadores de todos os tipos e que opere a partir dos pressupostos ditados por Joseph Campbell em O Poder do Mito, uma nova mitologia para um tempo que ainda não existe, pois o futuro é sempre uma escolha. Se é uma escolha há que se ter um caleidoscópio de inspirações, de ideias, experiências, experimentos e imagens que funcione como um repositório de possibilidades. E que amplie de maneira orientada os códigos que pessoas comuns contam para imaginar outras realidades possíveis, culturais, sociais, econômicas. Um laboratório público onde ideias de invenção do mundo são testadas e comunicadas, um programa de laboratório da imaginação preocupado em gerar novos imaginários sociais e conectar pessoas e conhecimentos;

Ideia 2: Defender e apoiar a liberdade artística de forma incondicional, sua diversidade, suas formas transgressoras e disruptivas de agir no mundo contra qualquer oposição, censura e auto-censura institucional, popular ou religiosa. É preciso dar respostas firmes ao comodismo e a submissão que as artes estão submetidas, em especial em países em desenvolvimento, mas não só. Apoiar artistas, poetas, escritores, criadores perseguidos ou sem apoio institucional para desenvolver sua arte e suas criações. Artistas novos, artistas estabelecidos, amadores ou profissionais a nível global. É urgente, institucionalizar a liberdade das artes como um pilar da democracia política. As agências de fomento e de cooperação há muito já deveriam ter se ocupado de criar programas de apoio com um grau de risco mais elevado, seguindo as agências de fomento científico e tecnológico. Se arriscar em linguagens desconhecidas, em curadorias degeneradas, em formatos de criação que provocam choque e resistência. Se há um clube de investidores globais de risco em produtos e serviços que apostam em novas formas de consumo e de relação do homem com seu meio, com finalidades econômicas, sociais, de saúde, colocando a inovação à serviço do enriquecimento e da economia de consumo e do bem estar, é possível induzir uma filosofia de maior risco nos investimentos voltados para as artes e as linguagens artísticas? Pergunto se é possível investir em massa em criações estéticas livres, em pensamentos criativos que levantem novas ideias, linguagens e propostas, com a única finalidade de perpetuar os significados da criação humana, para algo sem função, a não ser, lembrando o poeta Paul Valery, garantir que a poesia permaneça viva como um estatuto espiritual da passagem do homem pela Terra. E criar sistemas globais concretos para proteger aqueles que são perseguidos ou vivem em áreas ou situações de risco;

Ideia 3: Organizar um novo estatuto para a diplomacia cultural entendendo as redes de cooperação como a ferramenta mais potente para dar significado cultural aos alertas de cada geração, seus desafios , dores, sofrimentos e oportunidades. As políticas culturais de cooperação devem deixar claro o seu compromisso público com os anseios, necessidades e desejos dos jovens, mulheres e minorias que protestam nas ruas, que reagem a um sistema global de ordenação socioeconômica que sentem que deixou de cumprir o seu papel. Cabe a diplomacia cultural dar significado cultural a este tempo de mudanças, trabalhando por uma nova governança global capaz de ampliar a confiança nos sistemas de representação social, buscando fontes de pensamento, projetos e iniciativas que funcionem como uma bússola ética das mudanças culturais desejáveis. Isso significa mudar o pólo da relevância cultural, criando uma arquitetura de cooperação que coloque em relevo as potencialidades e potências que residem em cada lugar, a contribuição da cultura para os direitos humanos, para a segurança, a diversidade e a equidade. Para a festa popular, para a riqueza e o respeito ao sagrado dos povos tradicionais, para as economias culturais solidárias que verdadeiramente compartilham prosperidade e não apenas aquelas, criativas ou não, que perpetuam desigualdades históricas em moldes mais cool e fresh. A diplomacia cultural tem que assumir o compromisso de defender uma ética global mais justa, dinâmica, próxima do tempo de mudanças que vivemos e trabalhar para promover narrativas e cooperações que ajam contra a violência, a barbárie e o ceticismo propagados insistentemente pelos meios de comunicação, pelas falas de lideres globais e pela figura de imagem chamada de “o mercado”. A diplomacia deve ocupar um lugar de do it, enfrentando os problemas do presente, alargando a colaboração de atores os mais diversos, ampliando os intercâmbios culturais entre artistas e pensadores de países diversos para criar um manifesto de ideias e soluções que evite a repetição e a mesmice das fórmulas que estão hoje na mesa. O que proponho não é a utopia, mas estações de conhecimento, desenhadas com a finalidade de agir no presente para criar outro futuro, passo a passo, como linhas do metrô, não lineares, com hubs que concentrem ideias potentes e universalizáveis, mas com alternativas que apontem para lugares onde a ideia de estar junto tenha significado humano, civilizatório, à luz das conquistas sociais, culturais, científicas e tecnológicas que temos. Não basta mais nos guiarmos por objetivos costurados como agenda de compromissos por órgãos como as Nações Unidas[2], sem que atuemos para mudar o nosso sistema de crenças e valores. Sem que enxerguemos a possibilidade real de construirmos um novo sistema de governança global -como nos foi possível em vários momentos da história, como exemplo a própria criação das Nações Unidas- que salte da ideia de reparação ou redução de danos para tratar das mutações que tornem nossas vidas em comunidade, local ou global, dignas, cheias de significado e oportunidades para prosperar dentro de convicções diversas e liberdade autêntica para cumpri-las. Diria que a diplomacia cultural pode ser uma via para criarmos um novo renascimento que coloque o humanismo de novo no centro, pele, corpo, cor e movimento. A diplomacia cultural, como sublinhei no início dessa ideia, deve financiar as condições para uma nova ética cultural global, de forma explícita, com uma narrativa de comunicação convincente, intervenção nos principais fóruns globais de decisão, nas agendas e prioridades que são costuradas ali, facilitando o livre comércio e o trânsito de bens, produtos, pessoas e eventos culturais. Como a agenda ambiental foi capaz de criar um novo paradigma para o desenvolvimento no final do século XX, a agenda cultural, guiada por princípios culturais, artísticos e éticos, pode agir para estabelecer um novo paradigma de governança política que fale a partir das pessoas e não só do meio que elas vivem, que defenda a indignação, a rebeldia e a revolta traduzidas na ideia de levante: aquilo que tem potência para nos levar a um outro lugar. Não se faz isso sem se livrar das regras do jogo atuais e nem rompê-las abertamente, mas criando fissuras, brechas, reorientando recursos e fomentos, colaborando de forma decidida na reconfiguração das agendas compartilhadas globais. E acionando o ecossistema de arte e cultura – museus, bibliotecas, galerias, centros culturais e comunitários, escolas e programas de formação em arte e cultura, programas públicos e privados para operarem em conjunto com este objetivo. Se toda a guerra tem raízes em crenças culturais é necessário um grande volume de esforços, humanos e financeiros, para reinventá-las.

Meu resumo, ainda que não seja conclusivo, propõe pistas e caminhos no campo da experimentação, da defesa da liberdade inerente ao trabalho artístico ameaçado hoje por todos os lados, e da cooperação internacional como ferramenta ética para uma agenda de renascimento humano, aumentando a diferença e a complexidade dos modelos de pensamento que regem as decisões postas hoje na mesa. E capaz de incluir as pessoas, o público, a revolta como centro do processo de mudança.

[1] Oxfam, 2017. Uma economia para os 99%, Relatório Anual.

[2] Agenda 2030 da ONU, 17 Objetivos do Milênio.

Palestra proferida no dia 28 de Junho de 2018 na Biblioteca Municipal Galveias em Lisboa. Uma organização Acesso Cultura | Artemrede.