Convidámos Luís Sousa Ferreira a partilhar connosco a sua reflexão crítica sobre o
Prémio Acesso Cultura, que, em 2024, completa em 10 anos.
Foto: João Barata/CML

A abstração nem sempre é boa conselheira.

Sabemos que o estado da cultura em Portugal não é o mais auspicioso, mas as generalizações pessimistas só criam desalento e inoperância. Elas toldam-nos o olhar. E como lamenta o geógrafo Álvaro Domingues, em vez de vermos uma paisagem diversa onde distinguimos árvores, arbustos e flores, aplicamos o pouco-curioso e uniformizador epíteto de “Espaço Verde”.

O descrédito que é dado às poucas instituições culturais que temos, nivelando-as todas por baixo, resulta da desesperança. Isto é muitas vezes consequência de uma legítima e voraz vontade, que anseia pelas necessárias transformações, mas que não parte do país real.

O acesso à cultura pressupõe uma caminhada conjunta e, inevitavelmente, também por isso, mais lenta. Por sua vez, a nossa falta de esperança só ajuda quem não suporta a desarrumação inerente à transformação da sociedade. Contudo, neste país composto por vários ritmos, existem instituições e projetos, ou melhor, PESSOAS que fazem a diferença.

São pessoas que escolhem agir apesar das conjunturas nem sempre favoráveis.

São pessoas como a Mickaella Dantas (cujo nome é dado, a partir deste ano, aos Prémios Acesso Cultura).

São pessoas que se ungem de desassombro e de urgência de cumprir.

São pessoas que questionam as suas obrigações institucionais, sentidos e papéis. Por que não eu? Por que não nós?

São pessoas que invertem a desresponsabilizante ideia do outro. Do outro que não faz, do outro que não permite, do outro que não compreende.

Assim surgem projetos focados no nós, nos seus ecossistemas, nos campos de ação e naquilo que podemos construir em conjunto. Assim nascem projetos curiosos, que fazem a diferença, e que abrem um campo infinito de possibilidades.

A aldeia de Cem Soldos, em Tomar, responsável pelo festival BONS SONS, tem uma frase que explica bem isto que vos quero partilhar. “Nós somos uma aldeia que acredita e, por acreditar, faz.” O FAZER é indissociável de ACREDITAR, e os Prémios Acesso Cultura são também esse gatilho.

Há muita gente boa por este país fora, a fazer coisas que nós merecemos conhecer. É necessário dignificar, partilhar e disseminar estas boas práticas. Mas temos simultaneamente de divulgar o compromisso de mudança de algumas grandes instituições nacionais e a iniciativa de pequenos grupos. Temos o dever de reforçar o que já não deveria ser exceção, partilhando exemplos de instituições que conseguem cumprir a legislação referente à acessibilidade física, por exemplo, ou propostas que vão além da lei, que adivinham novos futuros.

A Acesso Cultura em geral, e o seu Prémio, em particular, tem este efeito em mim. Quando estou menos crente na mudança, aproximo-me e deixo-me contagiar pela persistência, resistência e exigência que os seus galardoados nos transmitem. Nos seus 10 anos de existência, o Prémio Acesso Cultura evidenciou projetos e práticas que, mais do que uma exceção, são peças de um caminho inevitável.

Senão vejamos…

A instituição presente

O Prémio Acesso Cultura não passa uma borracha nos problemas do país, mas ajuda a perceber que é possível edificá-lo de outras formas.

Hoje, lamentavelmente, nas comemorações dos dez anos do Prémio e dos 50 anos de democracia, ainda são construídos de raiz centros culturais pouco inclusivos.

Contudo, existem outros que tentam vencer constrangimentos do passado. Disso são prova os premiados Teatros Municipais São Luiz e LUCA, a Casa Fernando Pessoa e o Teatro Nacional D. Maria II, na capital, que transformaram os seus edifícios históricos, de maneira a promover a autonomia de públicos e de artistas. Estas instituições conseguiram alterar os seus modelos de comunicação e criar recursos inclusivos de programação com interpretação em Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição, por exemplo. Também diversificaram a amplificação do cartaz cultural com sessões descontraídas, conversas com o público, projetos de proximidade e de continuidade nas escolas, entre outras ações mais específicas.

Outro exemplo destas ações é a premiada Ampla Mostra de Cinema, realizada pela Associação Cultural Horta Seca, por ser pioneira na conceção de uma programação de cinema independente com as condições necessárias para um acesso universal.

As adaptações do espaço físico foram também importantes nas bibliotecas como é o caso da premiada Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, em Braga. Lá, os visitantes têm à sua disposição materiais em braille, audiolivros, audioguias, entre outros recursos.

Também a quebrar barreiras, muitas vezes impercetíveis, está a Biblioteca Municipal de Marvila, em Lisboa, onde se celebram hoje os 10 anos do Prémio Acesso Cultura. O projeto “Biblioteca Humana” reinventou a própria conceção de biblioteca, afirmando-a como um instrumento poderoso de combate ao isolamento e à exclusão social.

Estes prémios tocaram também às transformações da prática museológica diária, como é o caso do Museu do Dinheiro, na Baixa Pombalina, do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, ou do Museu da Comunidade Concelhia da Batalha. Para além das adaptações físicas, os jurados realçaram o significativo leque de recursos especiais direcionados para pessoas com baixa mobilidade, com baixa visão ou cegas, surdas ou com deficiência intelectual, para crianças e visitantes estrangeiros, bem como a riqueza dos seus serviços educativos.

A instituição fora de si

Queria agora realçar que as acessibilidades vão muito para lá de ultrapassar barreiras físicas. Existem inúmeros obstáculos que inibem a livre participação na vida cultural das comunidades, direito que está, aliás, consagrado na declaração universal dos Direitos Humanos (Artigo 27). Com essa consciência, muitas estruturas saem de si e promovem verdadeiros encontros.

Desengane-se quem imagina um país a dois ritmos, ou que o pode dividir nos binómios litoral e interior, norte e sul ou mesmo cidade e campo. Os territórios são uma mescla de realidades de difícil leitura para um olhar menos preparado e curioso.

Por todo o país existem pessoas que fazem a diferença, que trabalham com múltiplas dificuldades, muitas vezes pouco reconhecidas pelas próprias tutelas, fazendo parte de equipas reduzidas e com orçamentos que em nada dignificam propósitos tão essenciais. Na generalidade, a precariedade e os programas frenéticos condicionam a ação das estruturas culturais onde, no melhor dos casos, se disfarça a realidade sem realmente a transformar. Sem recursos ou criticidade, resume-se a ação cultural ao mimetismo de fórmulas de uns territórios para outros, onde se pediam diferentes modos de fazer.

Ainda no campo museológico, e contrariando o que acabei de referir, o Museu Carlos Machado criou o “Museu Móvel”, que é um projeto itinerante que se estende a toda a ilha açoriana de S. Miguel, onde se envolvem as populações normalmente alheias ao conhecimento museológico.

Seguindo a ideia da instituição fora de si, ou da instituição que não se confunde com as suas paredes, foram também distinguidos outros projetos itinerantes: A CRESAÇOR – Cooperativa Regional de Economia Solidária, com o seu projeto “Cultura à Porta”, uma plataforma de inclusão pela cultura; o “Cinema Insuflável” da Associação Cultural Figura; e projetos tão emblemáticos como as Comédias do Minho, uma companhia de teatro que trabalha com múltiplos agentes locais e comunidades.

Mais corpos, outras instituições

Em dez anos muito pode ter mudado na cultura em Portugal, mas nada de muito estrutural se consegue edificar num período tão curto. Contudo, o discurso está a mudar. O olhar sobre a diferença encontra no meio artístico e institucional um terreno mais permeável, tanto nos palcos como nas plateias. Ainda com quase tudo por fazer, existem projetos que reivindicam lugar para outros corpos, outras vozes e outras culturas na cena artística nacional.

Os 5ª Punkada, uma banda de punk, mostram-nos que, mais do que integração, é possível a verdadeira participação social e artística.

A esse respeito, muito também poderia ser dito da Associação Cultural Terra Amarela, mas gostaria aqui de destacar o trabalho essencial que têm desenvolvido para a formação profissional e empregabilidade de artistas com deficiência.

Também nas artes performativas, o Grupo Dançando com a Diferença, sediado na ilha da Madeira, é responsável por uma mudança de paradigma. Com um vasto reportório, reconhecido internacionalmente, mudou a forma como é percecionada a arte feita por artistas com deficiência.

No campo das artes visuais, fale-se da importância da veterana ANACED, pela promoção de um grande número de obras de artistas com deficiência, em múltiplas exposições pelo país.

Instituir outras práticas

Outras estruturas associativas foram premiadas nestes 10 anos, devido aos projetos pedagógicos contínuos desenvolvidos com foco na integração e inclusão.

A Vo’Arte, foi distinguida pela sua vasta experiência, contributo para a reflexão da arte associada a pessoas com deficiência, centrada naquilo que cada um tem de melhor para dar.

Por sua vez, a Associação de Dança e Desenvolvimento Social de Leiria, destacou-se pelo projeto “SOMA”, que oferece aulas gratuitas de dança inclusiva, onde pessoas com e sem deficiência podem participar na criação e interpretação de espetáculos comunitários.

No mesmo concelho, a Sociedade Artística Musical dos Pousos, promove o encontro através da educação, da prática e da fruição artísticas, trabalhando com grupos sujeitos à exclusão, como a comunidade cigana e reclusos, por exemplo.

No grande Porto, o Espaço T, com o seu projeto “Palcos para a Inclusão”, desenvolve um trabalho artístico intergeracional, independentemente das capacidades físicas ou psicossociais dos alunos, melhorando a sua autoestima e autoconceito.

No campo da música, foram destacados os projetos “Ao alcance de todos”, da Casa da Música, e o “Mãos que cantam”, da Associação Histórias para Pensar, que une ouvintes e não ouvintes num coro único que continua a encontrar na criação um espaço de liberdade.

Com o mesmo foco, os vimaranenses ondamarela foram distinguidos pelo projeto que desenvolvem com a comunidade Surda da ilha de S. Miguel, no Festival Tremor. Esta estrutura artística convoca as comunidades para criar poderosos manifestos de esperança.

Ferramentas institucionais

O campo virtual também mereceu a atenção do Prémio Acesso Cultura. Ao longo desta década, muitos foram os galardoados pelas suas ferramentas e sistemas digitais.

O Museu Nacional Ferroviário, sediado no Entroncamento, com o projeto “Welcome All”, criou um website acessível onde a visita ao espaço e coleções pode ser preparada previamente, bem como uma série de dispositivos e audioguias, com tradução em diferentes línguas, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.

À escala da cidade, o SIA (Sistemas de Itinerários Acessíveis), um projeto da Câmara Municipal do Porto, assegura e potencia a participação na vida cultural, com a disponibilização de uma rede de itinerários acessíveis. Através da consulta online, é possível saber qual o melhor percurso para chegar aos equipamentos culturais, bem como as suas características de acessibilidade.

Numa era onde o populismo e a desinformação proliferam no espaço virtual, destaco também dois dos projetos premiados pela promoção da acessibilidade intelectual. O trabalho desenvolvido pela associação cultural BUALA – um fórum virtual para a troca de conhecimento e discurso crítico sobre as questões da descolonização, ecológica e económica social – e o projeto “90 segundos de Ciência”, promovido na Antena 1, em parceria com diversos institutos e faculdades nacionais, com vista à aproximação da cultura científica.

Redes pouco institucionais

O acesso à cultura é um princípio basilar. Contudo, existem projetos que promovem verdadeiros ensaios de democracia cultural.

O projeto “Sou Largo”, ampliou o conceito de sustentabilidade do recém reinaugurado Largo Residências, agora nos Jardins do Bombarda. O “Sou Largo” promove a relação criativa entre artistas em residências temporárias e a população local, mas também a criação de negócios sociais, a promoção da economia do bairro, abrindo assim novas perspetivas de trabalho, de conhecimento e de fruição.

Ainda no campo da sustentabilidade, destaca-se a Parques de Sintra – Monte da lua e o Parque Biológico Serra da Lousã. São ambos projetos com práticas de excelência na integração e acessibilidade social. O Parque Biológico Serra da Lousã é um parque temático inovador, que congrega a biofilia, o património natural e cultural da região, o ecoturismo, bem como a inclusão laboral de pessoas com deficiência, doença mental e desempregados de longa duração.

No campo da acessibilidade social, o programa Cultura em Expansão, da Câmara Municipal do Porto, destaca-se pela ideia de movimento intrínseco à cultura, por levar espetáculos a diferentes lugares da cidade do Porto. O programa também proporciona laboratórios criativos que culminam na criação de espetáculos comunitários que conquistam as principais salas da cidade.

Ainda no Porto, o Museu das Marionetas desenvolveu o projeto “Quem Sou Eu?”, focado na comunidade sénior, destacando-se pela capacidade de mudança das rotinas diárias dos participantes e pela forma como estes assumiram a sua voz individual e coletiva.

A permeabilidade institucional

Este é o caminho necessário para que todos se vejam e revejam como protagonistas da sua história. A necessária representatividade nas artes, os sistemas articulados e a programação a 360 graus são mecanismos imprescindíveis para a integração de grupos tradicionalmente excluídos.

O projeto “A Rainha das Rosas”, da Associação de Pais das Escolas da Freguesia de Cortes e do Politécnico de Leiria e as “Histórias do João Balão” do Pedro Melo Pestana promovem a literacia e possibilitam que crianças com necessidades específicas possam acompanhar a mesma história.

A estes premiados que referi, numa combinação um pouco pessoal, confesso, juntam-se muitas outras menções honrosas. E a estes juntar-se-ão muitos outros projetos de mérito que ainda não foram distinguidos com este galardão.

Brecht dizia “Miserável país aquele que não tem heróis. Miserável país aquele que precisa de heróis”. Contudo, estes dez anos não foram desenhados por heróis. Tivemos antes uma década a evidenciar pessoas reais, que questionam, que se colocam no lugar de fazer e que acreditam na mudança.

A promoção da democracia cultural é um caminho longo, com passos por vezes meio desajeitados, mas que requer uma compreensão clara do lugar das instituições, que deverá sempre passar pela partilha do seu poder; deverá passar por devolver às pessoas o campo do sensível e a curiosidade sobre o outro; deverá passar pela promoção da equidade e da diversidade e por não cair na tentação de se substituir às próprias comunidades.

O Prémio Acesso Cultura poderá ser a inspiração de uns, e o dedo na ferida de outros. No fim de contas, eu espero que seja o necessário reforço junto das entidades responsáveis pela certificação de espaços e junto dos financiadoras de atividades, de que este é um caminho sem volta.

Duas mãos cheias de Prémio Acesso Cultura são dois punhos erguidos na conquista de um país onde cabem todas as pessoas.